Convivendo com a cegueira

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No Brasil existem mais de 1 milhão de cegos e 4 milhões de deficientes visuais. Segundo estudo recente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), 90% das vítimas de cegueira no país são de baixa renda.  Para a entidade, além de recursos públicos, falta informação para combater a cegueira. Para o oftalmologista Virgílio Centurion, diretor do IMO, Instituto de Moléstias Oculares, é preciso dar um novo enfoque à prevenção da cegueira. “Além da abordagem usual sobre as causas de cegueira com maior prevalência: catarata, glaucoma, degeneração macular relacionada à idade, retinopatia diabética, precisamos levar em consideração o custo social da cegueira, ou seja, a expectativa de vida e o tempo que pacientes sem acesso a tratamentos e orientações médicas viverão cegos”. É sobre a cegueira que o oftalmologista fala um pouco mais na entrevista que segue, enfocando medidas que podem ser aplicadas neste processo:

  • Como uma criança enxerga ao nascer? Os pais podem perceber alguma alteração na visão do bebê, logo após o seu nascimento?

Virgílio Centurion – Ao nascer, a criança tem condições de observar a luz e seguir vultos de alto contraste, por distâncias muito pequenas. A falta de resposta, principalmente a estímulos de luz muito próximos, indica de que a criança deve ser submetida a uma avaliação oftalmológica.

  • O pediatra da maternidade tem condições de fazer uma avaliação da criança, logo após o parto?

Virgilio Centurion – Ele tem condições de avaliar alguns reflexos da criança aos estímulos luminosos, ainda no berçário. O teste do fundo vermelho  –  teste do olhinho – que consiste na emissão de uma fonte de luz nos olhos do recém-nascido permite detectar a ocorrência de um reflexo vermelho no fundo do olho.

  • É possível explicarmos como uma criança que nunca enxergou, vê o mundo?

Virgilio Centurion – Primeiro, é preciso considerar que 80% das informações a respeito do mundo e do meio ambiente nos chegam pela visão, que tem também o poder de organizar as informações que os outros sentidos fornecem. Quando ouvimos um barulho e olhamos para o lugar de onde ele vem, sabemos dizer se foi um objeto que caiu da estante ou se é um cachorro latindo do outro lado do muro. Na criança com cegueira congênita, esse processo é seriamente prejudicado, pois ela não tem o uso coordenado dos outros sentidos. Na verdade, não possui os outros sentidos desenvolvidos para operacionalizar as informações recebidas de forma a suprir a falta de visão. Portanto, esta criança precisa ser acompanhada e orientada para o uso organizado das informações sensoriais que chegam até ela.

  • Como é feito esse trabalho? Como passar para a criança que nunca enxergou conceitos como a forma dos objetos, cor e outros mais abstratos?

 
Virgilio Centurion – A criança que nunca enxergou nunca vai ter a representação visual do que é uma cadeira ou uma bicicleta. Ela vai conhecer os objetos por meio do tato, do som, da finalidade ou da função que têm. Ao apresentar-lhe uma bola, por exemplo, é preciso fazer com que a explore tatilmente e perceba as alterações de contorno e de textura. Isso, associado às informações de finalidade e da função vai ajudá-la a ir formando conceitos. Já a criança que enxerga aprende muita coisa por imitação, copiando o que as outras pessoas fazem, ela formula conceitos de permanência, de causa e efeito e os automatiza. A criança cega não tem essa possibilidade de apreensão. Tudo precisa ser apresentado e ensinado para ela, utilizando as vias sensoriais íntegras, o que pressupõe um longo processo de treinamento, onde a família, a equipe médica e os educadores devem estar envolvidos.

  • Nos casos de surdez congênita não diagnosticados, as crianças não aprendem a falar porque não escutam. Freqüentemente, não apresentam desenvolvimento neuropsicomotor adequado. A criança cega consegue ter um desenvolvimento normal apesar da deficiência?

Virgilio Centurion – Ela pode ter um desenvolvimento normal se receber atendimento adequado precocemente. Caso contrário terá um atraso em seu desenvolvimento. Por isso, a importância da intervenção precoce. Quando a cegueira é detectada na infância, a criança deve ser encaminhada a profissionais especializados para ser estimulada o quanto antes. Essa medida faz parte de uma programação de acompanhamento definitiva e de longo prazo. Além disso, é importante pesquisar a incidência de algum problema neuromotor associado à cegueira, o que torna necessária uma avaliação integral dessas crianças. No entanto, mesmo que nada seja detectado, só o fato de não terem acesso às informações provenientes do meio externo, não alcançarem objetos, não receberem estímulos do rosto materno, paterno e de outras pessoas já vai  provocar um atraso no desenvolvimento neuromotor.

  • Com que idade deve começar a escolarização das crianças cegas?

Virgilio Centurion – O início da escolarização da criança cega deve obedecer ao mesmo critério cronológico das crianças com visão normal. Por isso, ela precisa receber atendimento precoce para evitar prejuízos em seu desenvolvimento. A criança cega é alfabetizada pelo método braile, que utiliza um alfabeto constituído pela combinação de seis pontos básicos.  A linha atual da educação é não segregar a criança cega, matriculando-a em escolas especiais. Essa tendência deve ser incentivada. A escola deve ser a mesma frequentada pelas crianças normais, só que tem de estar preparada para recebê-la e realizar sua inclusão naquele ambiente e na dinâmica com os outros alunos.

  • Agora, vamos falar sobre as pessoas que nasceram enxergando e, por causa de uma retinopatia, de um trauma ocular ou de uma lesão no nervo óptico perderam ou vão perdendo gradativamente a visão até ficarem cegas. Como é a adaptação dessas pessoas à sua nova condição e ao mundo?

Virgilio Centurion – É extremamente delicada a adaptação de uma pessoa que deixou de enxergar. Há uma fase de luto pela perda da visão, que  varia muito, de paciente para paciente. Há quem supere o problema num período mais curto e quem nunca o supere. De qualquer forma, a pessoa com cegueira adquirida tem a representação visual do mundo e dos objetos na memória, o que facilita suas atividades e ações. Mas mesmo assim, isto não a dispensa de fazer uso dos mesmos recursos de adaptação estabelecidos para os portadores de cegueira congênita. É preciso que ela também aprenda o braile e a movimentar-se com autonomia. Atualmente, existem recursos tecnológicos disponíveis que facilitam a vida dos cegos. Na área da informática há programas com vozes sintetizadas capazes de ler tudo o que está escrito na tela do computador e que ajudam a navegar pela Internet.

  • E como reagem as pessoas que perdem a visão na terceira idade, justamente quando os filhos cresceram e saíram de casa?

Virgilio Centurion – A partir dos 60 anos, o número de pessoas com dificuldade para enxergar começa a crescer bastante. Na verdade, precedida pelas cardiopatias e artrites, a perda da visão é a terceira maior queixa dos indivíduos nessa faixa de idade e não há dúvida de que a soma desses problemas de saúde limita muito as atividades e o relacionamento social das pessoas mais velhas.

  • E como é a adaptação do idoso à cegueira? Qual é o aprendizado possível nessa fase da vida?

Virgilio Centurion – Vamos considerar os idosos em que a baixa visão os impede de ler. Hoje, os oftalmologistas podem prescrever lentes especiais, recursos de ampliação da imagem que favorecem a leitura, mas exigem que o material escrito seja colocado bem perto dos olhos para proporcionar uma resposta visual satisfatória. Embora ler fosse uma atividade que lhes dava prazer, muitos se recusam a fazer isto, usando esses recursos. Já para os idosos cegos, a orientação é outra. Com o objetivo de melhorar sua qualidade de vida, eles são aconselhados a procurar profissionais que os ajudem a organizar a rotina das atividades diárias dentro do ambiente em que vivem, mas muitos também se mostram resistentes em adotar tal conduta.

  • Qual o papel da família do idoso que fica cego?

Virgilio Centurion – A família precisa apoiá-lo e insistir para que a pessoa idosa com baixa visão ou cega seja avaliada e receba orientação a respeito do que pode fazer para melhorar sua qualidade de vida. Não é porque um dos canais de contato com o exterior está comprometido, que ela vai fechar-se para o mundo.

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